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A “nova” roupagem da boa-fé possessória

Segundo a experiência napoleônica, o Direito Civil, em suas codificações, busca alcançar a maior número possível de situações jurídicas que precisem de soluções ou de resoluções. O Código Civil brasileiro, não obstante a mais do que necessária influência alemã, não se mostra de forma tão diferente: trata do nascimento até morte e da aquisição/utilização dos bens materiais no curso da vida.

Nesse ousado objetivo (de quase tudo definir e prever), a legislação civil reconhece certas facetas do comportamento humano e estabelece suas consequências positivas e negativas, em especial celebrando aqueles comportamentos que se adequam aos seus fins. A boa-fé possessória, tema deste breve ensaio, é exatamente uma destas situações.

Reza o art. 1.201 do Código Civil:

Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.

Assim, a priori, em interpretação literal, aquele que desconhece o vício da posse adquirida é reconhecido pelo ordenamento como possuidor de boa-fé. Assim, em favor deste especial possuidor, o diploma civilista prevê uma presunção (cujos efeitos processuais importam, em regra, no deslocamento do ônus probatório) em seu favor caso possua justo-título, ou seja, justificativa para exercício de sua posse (parágrafo único do art. 1.201).

Prosseguindo, a este possuidor de boa-fé, o legislador dispensou tratamento especial, resguardando-o nas hipóteses em que pudesse ter sua posse questionada por terceiro, o qual a perdera anteriormente, senão vejamos:

Art. 1.214. O possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos.

Art. 1.217. O possuidor de boa-fé não responde pela perda ou deterioração da coisa, a que não der causa.

Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.

Art. 1.222. O reivindicante, obrigado a indenizar as benfeitorias ao possuidor de má-fé, tem o direito de optar entre o seu valor atual e o seu custo; ao possuidor de boa-fé indenizará pelo valor atual.

Além das hipóteses acima, estabeleceu algo ainda mais formidável ao possuidor de boa-fé, garantindo-lhe a incolumidade possessória enquanto mantivesse tal condição:

Art. 1.212. O possuidor pode intentar a ação de esbulho, ou a de indenização, contra o terceiro, que recebeu a coisa esbulhada sabendo que o era.

Diante de tamanhas benesses, válido indagar o que efetivamente define a posse como de boa-fé, uma vez que tal tratamento diferenciado deve (ou ao menos deveria) demandar comportamento qualificado.

Para tanto, retomemos à leitura do art. 1.201 já referenciado: o possuidor deve ignorar o vício ou obstáculo da aquisição. O verbo ignorar, segundo principais dicionários da língua portuguesa, significa “não ter conhecimento ou informação a respeito de algo; não saber, desconhecer”.

Em uma leitura superficial, poder-se-ia dizer ao destacar a ignorância como fio condutor da condição de boa-fé, a lei define o agente como alguém passivo, que não investiu contra o direito de terceiro, bem como nada fez para impedir sua violação; em outras palavras, absolutamente alheio às circunstâncias que o levaram à condição de possuidor.

Não nos parece correta esta linha interpretativa. O desbravamento do significado da norma não depende apenas da apreensão de seus significados descontextualizados, mas sim da emersão de seu significado mais significante (com licença da redundância). A aplicação da norma atende a uma finalidade que deve possibilitada por sua interpretação.

É isso que faz entender, por exemplo, a LINDB, em seu art. 5, conforme:

Art. 5 Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

De volta ao Código Civil, nos deparamos com um diploma que nos leva a compreender que a experiência humana gregária depende de nossa capacidade de adotar e assumir certos comportamentos positivos, a fim de garantir direitos individuais e alcançar a paz social. Como protagonistas deste papel, podemos citar os artigos 422 e 187, os quais referenciam, respectivamente, a função criativa da boa-fé objetiva e a limitação ao abuso de direito.

Referenciados os artigos acima, vale destacar o importante papel da boa-fé objetiva como protagonista desta finalidade social da norma civil, genitora de standards comportamentais, cuja expectativa se legitima na própria base principiológica da lei. A estrutura do Código Civil, em uma leitura sistemática, faz transparecer a alma do ordenamento de forma muito clara: para a conformidade legal não basta estar, é necessário fazer.

O que garante essa conformidade, que se espalha pelo ordenamento como o sol que rompe a escuridão, é obrigatoriedade (cogência) de se tomar atitudes positivas e adotar práticas que permitam e viabilizem a manutenção dos direitos tanto individuais como transindividuais.

A boa-fé possessória, como o próprio nome já deixa perceber, também necessita desse “agir” para ser caracterizada. Lembremo-nos que a violação da posse é uma das maiores ofensas do ordenamento (ao menos em seus aspectos patrimoniais), possuindo inclusive tutela processual própria. Assim, imaginar o possuidor de boa-fé como alguém que simplesmente passivo, que desconhece o vício, esvaziaria totalmente sua finalidade social.

Nesse sentido, o possuidor de boa-fé é alguém preocupado, a todo tempo, com possível violação do direito de terceiro e que, por isso, se cerca da diligência mínima, capaz de, ao menos, levar à conclusão de que não há de forma óbvia a prática de um ilícito no processo de aquisição posse.

Obviamente, não se exigiria o dom da clarividência ou da omnisciência ao possuidor; há de se estabelecer exigência comportamental razoável e condizente com as circunstancias fáticas.

É nesta linha de construção que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem se firmando, valendo transcrever parte do Resp 1.434.491 – MG, de Relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino:

“Essa ignorância, como é cediço, não pode resultar de uma atitude passiva ou mesmo inocente do possuidor, que deve se cercar das cautelas mínimas necessárias a verificar se sua posse não interfere no direito de outrem. Assim, se as circunstâncias indicarem que o possuidor, embora não saiba do vício que lhe impede a aquisição da coisa, dele poderia ter tido conhecimento se tivesse agido com um mínimo de diligência não se mostra possível o reconhecimento da posse de boa-fé”.

Em conclusão, a configuração da boa-fé possessória sempre dependerá da prova de que foram adotadas, por parte do possuidor final, as cautelas mínimas e diligência necessárias para mitigar das chances de sua posse violar direito de terceiro, observadas as presunções legais e suas consequências para a distribuição do ônus probatório.

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